domingo, 24 de novembro de 2019

A Vida

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Uma pequena vila liga a rua esburacada à avenida que margeia um dos velhos canais da cidade. Ao longo desse correr de casas viviam duas pitangueiras produtivas que enfeitavam de cores, brindavam com seu aroma o entorno e faziam a alegria das crianças, dos sanhaços e de outros viventes despertos.

A insensibilidade humana decidiu e o silêncio comum permitiu que ambas fossem cortadas rés ao chão. Dói o coração!

No fundo do quintal da Pinacoteca, em companhia de uma caramboleira e de uma jaqueira, outra pitangueira sobrevive altaneira, enchendo de prazeres o nosso olhar e o estômago dos pequenos alados que por ali ainda revoam.

A luta entre o bem e o mal é parte da história do homem, mas o primeiro haverá sempre de vencer e nos garantir a sobrevivência.

O encontro fora adiado, mas o desejo pelo café acabou conduzindo o homem até aquele trecho tão querido; uma querença que sobrevive na simplicidade já antiga daquele conjunto de lojas de roupas, barbearias, doçarias e cafés, que fazem o agrado das gentes novas e mais ainda das antigas, como ele.

O livro aberto foi sendo folheado aos poucos e os aforismos escritos há tanto tempo iam sendo relembrados, o olhar vagueava também pelas cercanias sem se deter em excesso nas jovens mães com os bebês em seus carrinhos, na dupla de amigas concentradas no tema da conversa ou em um ou outro homem desacompanhado, quase como ele...

O sol descaindo no azul já esmaecido dizia ser hora de retornar a casa.

Na espera, diante do semáforo vermelho, persistia a dúvida sobre voltar a pé ou tomar um ônibus; a preguiça falou mais alto. Cruzou a Oswaldo Cruz e em seguida a Lobo Viana. Alguns metros adiante, uma senhora apoiada em sua bengala deixava que o seu olhar se perdesse entre a ramagem da árvore antiga. Passou por ela com cuidado, naquele reduzido espaço entre o canteiro e o muro do prédio de três andares. Pouco mais de dez passos dados e ele retorna para conversar com ela, pois percebera durante a passagem, que naquele canteiro havia também uma árvore de menor porte e que era nela que se concentrava a atenção da senhora. A similitude de energias sempre facilita o contato. O pé de acerola, que já dera o primeiro fruto, fora plantado pelo faxineiro do prédio onde ela reside; no canteiro seguinte, uma laranjeira chegara pelas mesmas mãos. No outro lado do muro, uma amoreira ainda virgem tivera os seus cuidados e ao lado percebia-se uma pitangueira, que ela mesma também plantara. Depois da despedida ele prossegue na direção do ponto de parada de ônibus, não sem antes se deter alguns segundos para olhar e perceber que a sacada da sala do apartamento do velho amigo agora estava envidraçada.

Não demorou muito para chegar em casa para o almoço; passava das seis da tarde.

Estômago cuidado, louça lavada e enxuta, era hora de pegar o guarda-chuva – nunca se sabe! – e se encaminhar para a reunião das sextas-feiras.

Atravessa a vila, chega ao canal e dali os passos prosseguem em direção da linha da máquina... Envereda pela Barão de tão boas e antigas lembranças e ao se aproximar da pitangueira amiga, percebe-a mutilada, galhos partidos chegando até o chão. Apenas um crime a mais!

Sentiu todo o seu desalento, quando por ela passou. Pensou então no pesar de todos aqueles que devotam amor ao outro e têm certeza que todos os irracionais, animais e vegetais, também sofrem dor e tristeza.

Carlos Gama.
26/10/2019 15:09:14
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Um comentário:

Carlos Gama disse...

É muito triste a realidade de nosso comportamento apático e irresponsável, meu amigo.
Vamos matando o futuro e as nossas chances de sobrevivência.